Na primeira escola em que estudei, as crianças eram proibidas de frequentar a Biblioteca. Lembro vividamente das portas fechadas com um aviso gritando “NÃO ENTRE” e das grandes janelonas de vidro que deixavam aparecer algumas prateleiras lá de dentro. Estudei nesse lugar dos dois aos dez anos de idade. Enquanto criança — e uma criança hiper estimulada à leitura por meus pais, que me levavam a livrarias, bibliotecas e feiras literárias —, nunca compreendi por que não podia entrar naquela biblioteca. Hoje, adulta, escritora e com uma vida inteira dedicada à literatura, entendo menos ainda.
Porque é lógico e quase óbvio em minha cabeça que os livros, na infância precisam estar acessíveis, para que se forme um leitor. Para que se desperte no mínimo o interesse por aquele objeto ao mesmo tempo estranho e encantador. E que um colégio (que não era pequeno) não entenda esse princípio básico me parece profundamente contraditório.
E, se na infância o interesse pelos livros já me fazia perturbar a professora com perguntas inoportunas sobre a misteriosa porta fechada, na adolescência — já em outra escola —, passava o horário do recreio lendo na biblioteca. E foi ali, nos anos em que não era nem adulta nem criança, que tudo mudou para mim. O que nasceu como curiosidade e interesse virou vício, enamoramento, uma verdadeira felicidade clandestina usada para escapar do mundo.
Nesse feitiço causado pela literatura em minha vida, nasceu também uma Bruna questionadora, revoltada contra as injustiças do mundo, combativa, profundamente inquieta em relação aos valores que se formavam como inegociáveis em sua vida. A literatura me ensinou quem eu era, quem gostaria de ser. E de forma tão intensa que depois de tantos anos se tornou quase a totalidade de quem sou. A literatura mudou minha vida, é indiscutível. E acredito tanto que os livros mudam o mundo que me parece um pouco absurdo deixar de apresentá-los às gerações que o farão de fato.
Sendo assim, essa semana viralizou um vídeo meu indicando livros para não se tornar um adolescente conservador. Não imaginei que a repercussão seria tão absurda, mas fiquei feliz em perceber que tem muita gente interessada em formar leitores pensantes, com senso crítico e interesse pelos livros — que no fim era o objetivo do vídeo.
Muita gente pergunta qual é o problema de ser conservador e se eu não estaria buscando doutrinar os adolescentes. Achei melhor responder por escrito, que é como me sinto mais confortável. E a verdade é que não tenho nada contra o conservadorismo como escolha individual de vida. Se você é religioso, se quer servir ao seu marido, “renunciar” à sua sexualidade… verdadeiramente, eu sinto muito (porque acredito que conservar o status quo numa sociedade em constante mudança não faz sentido), mas o problema é seu! Não é da minha conta.
A questão é que a onda de conservadorismo reacionário que vem tomando conta do nosso país há anos tenta ditar seus valores à vida dos outros. Tenta aplicar seus princípios religiosos, “tradicionais” e retrógrados ao coletivo como se todos que não os seguem precisassem ser exterminados. E a velha história que ouço de minha mãe desde que me entendo por gente é que o seu direito termina onde começa o do outro.
Então, me assusta essa específica onda conservadora entre os jovens e adolescentes, fazendo-os cada vez mais machistas, homofóbicos, transfóbicos… achando que liberdade é dizer o que bem entende sobre as outras pessoas, ainda que ofendendo, atacando seus direitos ou defendendo exclusões, em vez de aplicar seus valores apenas em suas próprias vidas. E falo não só da posição de observadora distante, mas de quem já esteve em sala de aula, lê redações de vestibulandos todos os dias e escuta dia sim, dia não as lamúrias das amigas professoras que explodem em crises de burnout pelo que se tornou a educação de adolescentes nos últimos tempos.
Adolescentes que, muitas vezes, enxergam o estudo como fracasso e cultivam uma ideia de que virar coach aos 13 anos de idade, com o dinheiro dos pais, torna-os superior a seus próprios professores. Adolescentes idolatrando jogadores de futebol que estupram e traem, ou cantores que agem como se um dos assassinos mais brutais do país tivesse roubado pão na casa do João. Adolescentes que vêm virando massa de manobra por todos os lados. E que, querendo ou não, são o futuro do nosso país.
E, veja bem, eu SEI e meu público me mostra todos os dias que essa não é a maioria e que ainda há muitos jovens sedentos por conhecimento e justiça social. Mas, a adolescência é o momento em que estamos em formação, construindo nossos valores sobre o mundo, entendendo quem somos e quem os outros são. Então é o momento crucial para que sejam apresentadas questões sociais e estimulado o pensamento crítico. É o momento perfeito para começar a entender que a sociedade é instável e que o questionamento ao imutável é o que faz rodar e se transformar tanto a produção de conhecimento quanto as práticas sociais.
E a leitura é uma formadora humana de maneiras tão diversas e bonitas que me parece essencial nessa fase da vida. Principalmente diante dos dados que vimos na pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, que, em 2024 apontou não só, pela primeira vez desde 2006, que há menos leitores do que não leitores no país, como também que diminuiu o número de leituras nas escolas e bibliotecas. E a que tipo de futuro estaremos condenados se as gerações que insistimos em pôr num mundo em ebulição global não estiverem dispostas a ler e pensar a partir disso.
Há, ainda, quem dê um sentido utilitarista para a leitura e só valide obras filosóficas, pragmáticas, que “sirvam para alguma coisa”, que ensinem de verdade como funciona o mundo e a sociedade. Eu tenho certa pena de quem não é capaz de ler o mundo numa ficção, num poema, num texto que aos olhos menos atentos soa como “pura baboseira”.
Mas jovens leitores conseguem. São capazes de construir empatia, compreender noções de injustiça, preconceitos, ideias políticas, senso de comunidade e articular temas seríssimos como desigualdade social, violências psicológicas ou política mundial a partir de suas leituras. Ler acumula repertório, facilita a desenvoltura linguística, as capacidades comunicativas. A literatura bem construída para esse público toca em assuntos que vão lhes fazer pensar para além das realidades que conhecem, elaborar críticas, seja a comportamentos dos personagens, seja ao mundo que lhes cerca.
A leitura é essencial para que tenhamos uma geração questionadora, atenta às repetições históricas, aos problemas que rondam nossa sociedade. Uma geração que não se renda às distopias da vida real, porque leu as da ficção e sabe bem identificar seus sinais.
Mas é claro que isso não é do interesse de todos…